Cap. 144 - Contos e causos de
um advogado...
Texto do capítulo do livro: “Código de
Vida”, de Saulo Ramos,
advogado famoso, de longa e
profícua vida nas lides jurídicas e políticas.
De Brodowski, 08/06/1929 –
Ribeirão Preto, 28/04/2013, com 83 anos.
Foi Ministro da Justiça no
governo José Sarney (1985-1990)...
Código da Vida, um romance da
vida, de memórias, de suspense e da história recente da vida política do nosso
Brasil. Um pouco de cada coisa, formando um todo de muito interesse, de
interesse inebriante, contagiante, que de qualquer modo, encanta, e nos abduz a
seguir, sem descanso, porém com prazer, na lida da leitura.
José Carlos Ramires
Junho/2013, 1º dia
A
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dvogado. Coisa estranha.
No princípio, me senti meio padre, meio psiquiatra. As pessoas contavam seus
dramas, nem sempre fielmente; mas eu as ouvia com atenção, para pinçar, no meio
da história, algo que demonstrasse um ponto de direito lesado, que, afinal,
deveria ser o objeto da causa.
Depois, sozinho, estudava tudo. Ráo[i],
meu chefe, ensinava: “Primeiro, leia a lei de regência e verifique você mesmo o
que a norma lhe diz. Reflita e tire suas próprias conclusões. Jurisprudência e
doutrina ajudam, mas são subsídios que se agregam depois”.
Do ponto de vista jurídico, aprendi que a aflição humana
causada por uma lesão de direito, por mais individual que seja sempre é um fato
social, porque resulta de costumes, da convivência, de atritos, da cultura e da
previsão legislativa. Fato social.
Assim, fui entrando para os tribunais com o fato social
às costas, enfiando-lhes roupas antigas, costuradas por Vivante, Carnelutti,
Clóvis, Pontes, Ráo, Mazeaud e Mazeaud, Kelsen.[ii]
De quando em vez, um remendo era meu. Roupa nova no fato social. Sobretudo
naquele atormentado pela dor na alma.
E começou um não-acabar-mais. Clientes, clientes,
clientes, grandes empresas, gente famosa, gente pobre, gente rica, gente e mais
gente.
Adeus, abacaxi de Brodowski; adeus, cafezais de
Cravinhos; adeus, chope do Pinguin; adeus, Ribeirão Preto; adeus, meu
jornalismo de Santos. Agora, estou em São Paulo, rodeado de gente e de fatos
sociais, lendo leis, estudando direito, devorando livros.
Sem perceber exatamente quando, transformei-me em
advogado famoso, considerando-se que a
fama é medida pela afluência de clientes. Por mais que quisesse, hora para
consulta começou a escassear. Novos clientes na fila, esperando meses, fato que
os fascinava e os mantinha à espera quando não havia urgência.
Fui um ganhador de causas. Venci quase todas. Não sei
como sabiam disso, pois não fazia publicidade. Jamais permiti notícias sobre
resultados de processos, até porque, longe da imprensa, o litígio é mais sereno
para o cliente, para o advogado e para o juiz.
Mas as pessoas ficavam sabendo e forçavam a porta do
escritório, para alegria das minhas secretárias, meus assistentes e meus
colegas e para o meu cansaço, embora, ao aceitar uma causa, passasse a dar tudo
de mim, como se fosse a única.
Claro que a privilegiada situação profissional rendeu
dividendos. Nas proporções devidas, ganhei bem. A Vicente Ráo, que sabia tudo
de quase tudo, consegui, depois de muito tempo, ensina uma única coisa: cobrar
honorários.
No escritório, porém, jamais deixei de atender a pessoas
pobres, que nada podiam pagar, quando o caso era de evidente justiça.
Tive enorme prazer em atender a um paraplégico pobre e
ganhar sua causa depois de longa demanda. O caso dele despertou-me para um
problema: no Brasil, não existia um único texto legal em defesa do deficiente
físico. Dei-lhe até os honorários de sucumbência, isto é, pratiquei o
assistencialismo, mas senti que o problema era mais profundo e ficou me
remoendo. Muitas pessoas sem recursos me provuravam por ouvir dizer. Entre os
ilustres clientes “de graça”, a UNE (União Nacional dos Estudantes), que tinha
como presidente Lindbergh Farias, hoje senador e pelo PT, eleito pelo Estado do
Rio de Janeiro. Sua maior qualidade, no entanto, era a simpatia e o sotaque de
paraibano. Ganhei para eles o direito de pagar meia-entrada em todos os
espetáculos públicos, a começar pelo cinema. Quando vinha o cliente pobre, a
primeira frase era comum a todos: “Não posso, doutor, para um advogado como o
senhor, mas...”. Depois desse “mas”, quase sempre um drama humano, a angústia,
a dor, o pedido de socorro.
Se a causa fosse simples, encaminhava para advogados mais
jovens e os compensava com participação em outras, de boa remuneração. Se a
questão de direito fosse intrincada, eu mesmo ficava com o problema. E um
pobre, pela simplicidade de suas vidas e relações, pode ter questão de direito
complexa? Pode, e como!
Nada disso foi feito por demagogia ou por exibicionismo,
mesmo porque, como já disse, jamais fiz publicidade ou permiti noticiário sobre
meus casos. Há um momento na vida de todo homem em que o exercício da solidariedade,
por ternura ou amor ao próximo, não depende de remuneração. Creio que os
advogados, quase todos, cultivam esse sentimento. Enfim, esses auto-elogios
estão sendo escritos num elegante – penso eu – exercício de cabotinismo[iii],
para contar como fiquei sabendo da existência desse bicho chamado advogado.
...E
aqui termina este capítulo para começar outro recomeço. O do início dos primeiros contatos do dr.
Saulo, quando criança, com a justiça e com advogados... E que talvez explique o
seu despertar para a lide judiciária.
Aguarde
o próximo capítulo... O de nº 145...
José Carlos Ramires
01/junho/2013
[i] Vicente Paulo
Francisco Rao1 (São
Paulo, 16 de junho de 1892 — São Paulo, 19 de janeiro de 1978) foi
um advogado, jurista, professor e político brasileiro. -
http://pt.wikipedia.org/wiki/Vicente_Rao
[ii] Todos advogados
e jurista famosos
[iii] substantivo masculino
Derivação:
por extensão de sentido -Tendência a atrair ou tentar atrair sobre si as
atenções
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